Onde vivem os Monstros: entre a Posição Esquizo-paranóide e a Posição Depressiva.
Onde Vivem os Monstros é um livro infantil americano escrito em 1963 por Maurice Sendak. O livro trata de vários assuntos sujeitos à interpretações psicanalíticas mas neste texto iremos nos concentrar em uma leitura centrada nos conceitos teóricos de Posição Esquizo-paranóide e Posição Depressiva de Melanie Klein. Para isso, iremos primeiro fazer um resumo do livro que seguiremos por uma breve apresentação teórica das posições citadas acima. Finalmente, iremos interligar elementos da história de maneira mais precisa com a teoria de Melanie Klein.
RESUMO
A história é a do menino Max que, vestido com sua fantasia de lobo, faz tanta malcriação em casa que é mandado para a quarto sem jantar pela mãe. Uma vez de castigo, ele se transporta para uma floresta, embarca em um veleiro, navega por meses, até chegar numa ilha, onde vivem os monstros. Lá, ele se estabelece como o mais monstruoso de todos e é rapidamente coroado rei. Segue-se então uma bagunça geral ordenada por Max, que vai aumentando até o próprio Max mandar os monstros para o quarto de castigo sem comida. Ao ficar sozinho, ele sente falta da comida de casa e das pessoas que gostam dele de verdade. Ele resolve então voltar para casa, mesmo contrariando os monstros, e ao chegar lá, um ano depois, encontra no seu quarto o seu jantar ainda quentinho esperando por ele.
POSIÇÃO ESQUIZO-PARANÓIDE
A Posição Esquizo-paranóide, conceito elaborado por Melanie Klein (1946), é considerada como a fase mais arcaica do desenvolvimento humano. Esta posição, situada nos primeiros meses de vida, é caracterizada pela primeira relação de objeto do bebê, sendo esse o seio da mãe. Esta relação de objeto provoca a aparição de defesas como a projeção, introjeção, identificação projetiva e cisão (splitting) de objeto.
Segundo Klein, o ego da criança é exposto, desde seu nascimento, à ansiedade devido à pulsão de morte e pulsão de vida que agem sobre seu ego. O conflito imediato das duas pulsões gera uma grande ansiedade no bebê. Confrontado pela ansiedade derivada da pulsão de morte, o bebê precisa livrar-se dela e para isso seu ego a deflete. Essa deflexão da pulsão de morte consiste em parte em uma projeção e em parte em uma conversão da pulsão de morte em agressividade. Ocorre então um processo derivado de um dos mecanismos de defesa citados acima — a cisão ou splitting. O ego se divide e projeta a parte em que se encontra a pulsão de morte para fora, no objeto externo (seio). Logo, o seio é percebido como mau e ameaçador para o ego. Dessa forma, o medo original da pulsão de morte é transformado em medo perseguidor. Ao mesmo tempo, é estabelecida uma relação não só com o objeto mau como com o objeto bom (ideal). Ou seja, da mesma forma que a pulsão de morte é projetada a fim de proteger o ego, a libido também é projetada para criar um objeto idealizado (pulsão de vida). Parte de ambas pulsões que permanecem dentro do ego são usadas para estabelecer uma relação com esse objeto idealizado. Dessa forma, o ego tem uma relação com dois objetos desde muito cedo: o objeto primário (seio) é nessa fase dividido em duas partes — seio bom (ideal) e seio mau (persecutório) (SEGAL, 1975). Dentro dessa dinâmica, o objetivo passa a ser adquirir, manter dentro e identificar-se com o objeto ideal que é percebido como algo que lhe dá vida e que lhe protege.
O bebê encontra-se aí então na Posição Esquizo-paranóide. Essa fase é marcada pela predominância da ansiedade referente ao medo da intrusão dos objetos maus e persecutórios em seu ego e a consequente aniquilação de seu objeto ideal interno e do self. A vivência das ansiedades nessa fase levaram Klein a dar-lhe esse nome: Posição por ser transitória, Paranóide por ser a ansiedade predominante, e Esquizóide pelo estado do ego e de seus objetos (splitting) que caracterizam a fase (SEGAL, 1975).
POSIÇÃO DEPRESSIVA
A Posição Depressiva designa um conceito kleiniano relativo à etapa posterior do desenvolvimento do bebê. A autora acredita que, após vivenciar toda a turbulência da Posição Esquizo-paranóide, o bebê poderá ingressar nesta nova fase da Posição Depressiva. Klein também acredita que o início do Complexo de Édipo ocorre mais cedo que na teoria de Freud e coincide com o início desta Posição Depressiva, quando a ansiedade persecutória diminui e os sentimentos amorosos passam a ocupar mais espaço. Klein (1952), acredita também que algum grau de integração seja necessário para que o bebê consiga introjetar as figuras parentais como um todo. Esse desenvolvimento da integração e da síntese é iniciado quando o bebê ingressa na Posição Depressiva deixando as características da Posição Esquizo-paranóide para trás. O ego passa a diminuir a distância entre o mundo externo e interno, e consequentemente, os objetos passam a ser mais integrados e realistas e menos idealizados. Todos esses processos de integração e de síntese fazem com que apareça o conflito entre amor e ódio. Assim, surge a ansiedade depressiva e o sentimento de culpa diferentes dos encontrados na Posição Esquizo-paranóide, pois os objetos bons e maus não são mais cindidos como antes e há uma aproximação entre a mãe boa e a mãe má.
Na posição depressiva, o bebê encontra-se então mais integrado e as defesas não aparecem de forma tão extrema quanto na Posição Esquizo-paranóide e correspondem mais à capacidade do ego de enfrentar a realidade psíquica. Frente a essas ansiedades eminentes, o ego terá tendência a negá-las e pode, quando a ansiedade for extrema, negar o amor pelo objeto. Nesse caso, ocorrerá um abafamento do amor e um distanciamento dos objetos primários e um aumento na ansiedade persecutória que poderá ou não, resultar em uma regressão à Posição Esquizo-paranóide.
ANÁLISE DO LIVRO PELA TEORIA KLEINIANA
Nas primeiras páginas do livro, podemos observar que o pequeno Max, vestido de sua fantasia de lobo, começa a fazer bagunça em casa, especialmente em uma das cenas perseguindo o cachorro com um garfo na mão, como se fosse devorá-lo. Para Klein (1946), “o impulso destrutivo projetado para fora é inicialmente vivenciado como agressão oral”. Além do mais, a autora acrescenta que “em estados de frustração e ansiedade, os desejos sádico-orais e canibalescos são reforçados”. Podemos então identificar que, por alguma razão que não é apresentada no livro, Max estaria vivenciando algum tipo de frustração ou ansiedade que teria o levado a se comportar de maneira agressiva. Quando Max é mandado para o quarto sem jantar, esta privação perturba o equilíbrio normal entre impulsos libidinais e agressivos e reforça então seus impulsos agressivos já atuantes criando assim uma voracidade ainda maior.
Um dos diálogos mais interessantes do livro, do ponto de vista kleiniano, ocorre no momento onde a mãe aparece no livro quando repreende Max pelo seu comportamento destrutivo. Ela o chama de “monstro” (símbolo de voracidade) e ele lhe responde “olha que eu te como” e acaba sendo mandado para a cama sem poder jantar. Esta troca de palavras mostra claramente a agressão oral e a presença do medo e do controle de comer e ser comido, características da angústia persecutória da Posição Esquizo-paranóide. Segundo Klein (1946) “Como os ataques fantasiados ao objeto são fundamentalmente influenciados pela voracidade, o medo da voracidade do objeto, devido à projeção, é um elemento essencial na ansiedade persecutória: o seio mau o devorará da mesma forma voraz com que ele deseja devorá-lo”.
Além desta observação, identificamos neste diálogo um dos mecanismos de defesa mais citados por Klein, a Identificação Projetiva. É a partir da projeção da pulsão de morte que se desenvolve tal mecanismo de defesa. Partes do eu (self) e de objetos internos são projetadas (splitting) no objeto externo tornando-o possuído e controlado por essas partes projetadas que possibilitam o self a identificar-se com elas. Esse mecanismo tem vários objetivos. Pode ser dirigido ao objeto ideal, com o fim de evitar separação do mesmo, ou dirigido ao objeto mau a fim de obter controle sobre ele, a fonte de perigo (KLEIN, 1958). Ora podemos ver que Max, ao ser chamado de monstro, projeta as partes excindidas do seu eu, provindas da angústia persecutória, para dentro do objeto externo, neste caso a mãe “olha que eu te como!”. Max se identifica então com sua mãe a partir das partes do eu que projetou contra ela, o medo de ser devorado.
Frustrado, Max começa a imaginar a aparição de uma floresta e da ilha dos monstros. É nesta viagem do inconsciente que podemos ver a natureza fantasiosa da cisão (splitting) que Max faz do objeto e do self contra a ansiedade externa. De aparência assustadora e agressiva, os monstros, no entanto, não assustam Max que rapidamente os domina com um “truque mágico”. Os monstros ficam com tanto medo que declaram que “mais monstruoso do que ele não havia” e Max vira então rei dos monstros.
Ao ser coroado rei dos monstros, Max ordena uma bagunça geral, aquela mesma bagunça que não pôde fazer em casa, Max mostra grande onipotência e pela negação, se afasta ainda mais da realidade psíquica de frustração que estava até pouco tempo atrás. Este processo de onipotência e negação é também geralmente observado na Posição Esquizo-paranóide. Max se torna então neste momento apenas um “menino mau” (negação de uma parte do ego) que esqueceu de sua mãe (relação de objeto) e dos sentimentos amorosos que tem por ela.
Seguindo esta negação da realidade psíquica, Max manda os monstros pararem de fazer bagunça e irem para cama sem jantar, repetindo o mesmo castigo que sua mãe lhe deu mais cedo. Com essa ação o ego de Max vai se esforçar para projetar o mau e introjetar o bom como mecanismo de defesa. Mas enquanto os monstros dormem, Max começa a se sentir sozinho. Ele é então invocado a voltar para a mãe pelo cheiro de comida que chega até ele e decide desistir de ser rei dos monstros para voltar ao seu quarto onde sua comida o espera. Podemos ver aqui o processo que Klein (1946) identificou como gratificação alucinatória onde há uma invocação onipotente do objeto e da situação ideais, a mãe que lhe dá comida, e a aniquilação do objeto mau persecutório e da situação de dor, fugir do isolamento e da possibilidade se ser devorado pelos monstros. Ao ir embora da ilha dos monstros, outro diálogo importante aparece quando os monstros dizem a Max “oh por favor não vá embora…nós vamos comer você…gostamos tanto de você!” ao qual o menino responde “Não!”. A realização da integração do objeto bom (“gostamos tanto de você”) com o objeto mau (“vamos comer você”) é aqui simbolizada na fala dos monstros. Ele se dá conta então do perigo (pulsão de morte) de ceder totalmente ao seu Id (os monstros) e literalmente nega sua angústia persecutória. É pela cisão (splitting), que permite ao ego emergir do caos (bagunça geral) e ordenar suas experiências rumo à integração (fugir da ilha), que Max faz sua viagem de volta, rumo à Posição Depressiva.
Ao ver que apesar de poder fazer bagunça com os monstros, eles são ameaçadores e não lhe dão a mesma gratificação que a mãe, Max vive uma intensificação do medo da perda do objeto bom pela sua destrutividade e percebe, pela gratificação da comida (lembrada pelo cheiro), que a mãe também tem um lado bom. Ao fazer a viagem de volta, Max diminui a distância psíquica entre o mundo externo (quarto) e interno (ilha dos monstros), e assim consegue integrar o objeto (mãe) como mais realista e menos idealizado. Pelo impulso de reparação de voltar para casa, Max unifica a mãe boa e a mãe má e retorna então à Posição Depressiva. Esse retorno se faz ao voltar para seu quarto, onde encontra seu jantar (seio gratificador) e começa a tirar sua fantasia de lobo, símbolo de seu impulso primitivo, agressivo e destruidor.
Em conclusão podemos dizer que, pela idade que aparenta ter no livro, Max já deveria ter atingido a posição depressiva. No entanto, o menino parece, no momento da trama, estar atuando seus impulsos agressivos. Quando vive a ansiedade e frustração do castigo da mãe, ele se distancia do objeto primário (mãe) no seu inconsciente, pela viagem à ilha dos monstros, e abafa seu amor, aumentando assim sua ansiedade persecutória e regredindo momentaneamente à Posição Esquizo-paranóide (bagunça geral). Ele somente volta à Posição Depressiva no final do livro quando consegue unificar o objeto bom e o objeto mau como um mesmo objeto.
REFERÊNCIAS
KLEIN, M. Algumas conclusões teóricas relativas à vida emocional do bebê. In Inveja e gratidão e outros trabalhos. Obras completas de Melanie Klein. Vol III, pp.86–118, 1952
KLEIN, M. Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In Inveja e gratidão e outros trabalhos. Obras completas de Melanie Klein. Vol III, pp.17–43, 1946
KLEIN, M. Sobre o desenvolvimento do funcionamento mental. In: Obras Completas de Melanie Klein: Volume III Inveja e Gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1958.
SEGAL, H. Introdução à Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
SENDAK, M. Onde vivem os monstros, São Paulo, Cosac Naify, 2009